“Traços de autismo” (ou God Moving Over The Face Of The Waters, Moby)
A beleza não-diagnosticada de sentir o mundo de forma diferente.
EU AINDA ESTAVA NA UNIVERSIDADE, MEADOS DE 2010, QUANDO APROVEITEI UM DOS MUTIRÕES DE PSICOLOGIA PARA CONVERSAR COM UM PSICÓLOGO. Instigado pelas pessoas ao meu redor, eu queria respostas para o fato de ser tão calado, não conseguir me conectar profundamente às pessoas, ter hiperfoco em determinada coisas, odiar sons altos e amar ficar sozinho. Eu incomodava as pessoas e, por isso, vivia em um processo de autocensura, tentando ser “mais sociável”, “mais legal”, “mais sorridente”.
Por baixo dessa máscara, eu só queria morrer.
Minha mãe conta que eu sempre fui uma criança solitária. Tinha amiguinhos, brincava na rua, porém, havia um “algo diferente”, um “tempero de melancolia” no modo como, dizem, fazia pouco contato visual ao mesmo tempo em que prestava atenção aos adultos e parecia “mergulhar em assuntos que não eram para criança”. Contam que fui aquele garoto que amava desenhar, tinha curiosidade para saber como funciona uma televisão “por dentro” e cheguei a estripar um sapo morto para entender o funcionamento dos órgãos. Berros, gritos e música alta me deixavam desnorteado — algo que aprendi a mediar — e, diferente de outras crianças, minha mãe diz que eu conseguia ficar, literalmente, horas e horas imerso nas tintas, desenhando concentrado e alheio ao mundo.
Porém, era um incômodo para as pessoas, afinal, “havia algo de anormal”.
Foi assim que cresci nessa balança entre ter orgulho dessa minha capacidade de detalhamento e de mergulho nos meus abismos interiores e ter de lidar com as críticas de quem dizia que eu precisava ser “mais”, “mais” e “mais”. E, já que somos seres sociáveis e precisamos desse olhar externo para entender quem somos, o que os outros me diziam suplantou a tranquilidade que eu tinha.
Diante disso, eu me fechei, calei e sofri todo tipo de violência nessa tentativa de “me encaixar”. Some isso a uma época (anos 1990) em que ainda vigorava a noção de que certas coisas eram “só frescura”, “coisa de retardado”, “coisa de viado” — e não havia tantos cuidados com a infância como há hoje — e temos a explicação para várias coisas. Por exemplo, o porquê de eu ter perdido a virgindade aos 12 anos com um garoto e ficar tão transtornado com a situação que na mesma semana “transei” com uma menina que diziam ser “minha namoradinha da rua”. Ter começado a beber aos 13 anos, ficar cada vez mais calado, ser amedrontado em relação às pessoas, tudo se encaixa nesse mesmo quebra-cabeça.
Contudo, por baixo desses mecanismos de “encaixe social”, ainda estava aquele garoto que só queria ficar horas e horas sozinho, focado em alguma coisa, observando o mundo.
Sabe o que é mais curioso: a mesma sociedade que reclamava e reclama de que eu tenho “um coração muito frio” é constituída exatamente pelas pessoas que me obrigaram a ter esse mesmo “coração frio”. Eu sou fruto de uma geração do “seja macho”, “homem não faz isso”, “homem não faz aquilo”, “homem não chora”. Especificamente nesse último ponto (não chorar), sempre tive consciência da minha sensibilidade meio aflorada, porém, eu fui me condicionando a chorar escondido ao ponto de virar quase um açude vazio. É uma cicatriz tão forte que até hoje, aos 37 anos, pouquíssimas pessoas me viram chorar.
E isso contribuiu mais ainda para o “incômodo” que as pessoas têm em relação a mim.
De posse de toda essa bagagem foi que cheguei naquele dia para conversar com o psicólogo. Eu queria mudar, queria me transformar em um “outro eu”, ser “mais”. Ele fez alguns testes e descobriu que havia “traços de autismo”, porém, eu não era autista. Até chegou a brincar que eu estava no “grau 0,8 de autismo”. E foi aí que a perspicácia daquele cara (e a ética) falou mais alto e, ao invés de propor terapias logo de cara, ele me fez a pergunta que carrego comigo até hoje:
— Mas o jeito que tu és te incomoda e atrapalha, ou tu estás incomodado por que as pessoas estão incomodadas com o jeito que tu és?
E foi ele quem me ensinou uma das máximas da Psicologia que é:
— O incômodo que sentimos em relação às outras pessoas não tem a ver com as outras pessoas, mas conosco. Às vezes, a outra pessoa está feliz, realizada, mas nós, imersos em nossas dores, queremos mudar o outro por não termos coragem de mudar a nós mesmos para aceitar o outro como ele é.
Eu gosto de ser quem eu sou e como sou. De fato, quando paro para refletir, aspectos como o hiperfoco só me trouxeram vantagens que, somadas às minhas experiências de vida e ao que chamo de “mergulhos internos”, possibilitaram que hoje chegue ao ponto de, apesar do barulho ao meu redor, escrever em qualquer lugar, focado, imerso nas palavras. De fato, meu maior incômodo era toda a bagagem de coisas que me diziam sobre eu precisar mudar para me adaptar, precisar de um “diagnóstico”.
E aí fica a pergunta: e se não houver um “diagnóstico”? Um “tratamento”? Uma “cura”? O que você vai fazer: mergulhar para compreender os próprios incômodos em relação aos outros, ou insistir em querer mudar as pessoas?
Anos depois, quando fiz 30 anos, outro psicólogo confirmou que eu não sou autista, mas tenho sim “traços de autismo”. Acho que refiz os testes só para confirmar o que eu já sabia; colocar um ponto final na questão e seguir a vida com mais leveza.
E segui.
Quando penso em toda essa jornada, eu me sinto bem. É claro que eu quero interagir e quero que as pessoas gostem de mim — isso é até instintivo do ser humano. Porém, algo que aprendi é que as máscaras pesam muito. Pior ainda, se você as usa por muito tempo, o material com o qual são feitas pode se fundir à nossa pele de tal modo que chega a um ponto que não sabemos mais quem somos. E isso é muito, muito perigoso.
É perigoso porque você desaprende a sorrir para o espelho e começa a se preocupar demais com os outros.
Na autobiografia “Porcelain”, o DJ Moby explica que compôs “God Moving Over The Face Of The Waters” em um momento de muita angústia quando buscava por respostas. Então, ele lembrou de uma passagem da Bíblia, lá do começo, quando diz que Deus, ao terminar de moldar o mundo, caminhou sobre a superfície das águas. Ao terminar a canção, Moby a colocou para tocar, deitou-se no chão e chorou durante horas. A melodia de “God Moving Over The Face Of The Waters”, para mim, capta exatamente esse sentimento de completude, observação, abraço.
“God Moving Over The Face Of The Waters” é uma canção de silêncio.
Teve um dia que chorei no meio da rua quando minha playlist me jogou “God Moving Over The Face Of The Waters”. Meus olhos se encheram de lágrimas e tudo bem. Respirei fundo, olhei para cima e agradeci por tudo. A beleza de músicas instrumentais é que você precisa apenas sentir e deixar fluir, sem necessidade de uma letra que se “encaixe”.
Eu amo “God Moving Over The Face Of The Waters” porque, mesmo que as pessoas se incomodem com isso, foi com ela que aprendi a chorar.
Música: God Moving Over The Face Of The Waters, Moby (Moby)
Álbum: Everything Is Wrong, 1995