Um sentimento de justiça agridoce (ou Apesar de Você, Chico Buarque)
Brasília ferve diante do relatório da Polícia Federal, enquanto relembro como a música de Chico Buarque me parece ter tudo a ver com isso.
LEMBRO DA ÉPOCA DA PANDEMIA E DO HORROR DE VIVENCIAR TUDO AQUILO ALI JUNTO A UM GOVERNO NEGACIONISTA. Eu fui um dos tolos que imaginou que a dor coletiva, literalmente mundial, mudaria as pessoas, traria algum grau a mais de consciência, despertaria alguma empatia. Só esqueci de uma coisa: nossos políticos passaram décadas ninando uma serpente que apenas hibernou em 1984, mas sempre se manteve atenta e sedenta pelo retorno. Um animal ardiloso que envenenou as mentes das pessoas com tantas conspirações, medos e falsos profetas-heróis que, no instante crucial da humanidade, alimentou piadas diante da morte.
A Organização Mundial da Saúde, quando retirou o aviso de emergência global, divulgou que foram cerca de 20 milhões de mortos e quase 800 milhões de infectados. Setecentos mil mortos, apenas no Brasil. Não podemos esquecer disso. Isso oficialmente, já que os números podem ser muito maiores.
Cloroquina, Ministros da Saúde sem experiência da área, negacionismo, ozônio enfiado no rabo, orações em templos e igrejas para afastar a Covid, ojeriza ao uso de máscaras… Quantos não morreram por causa disso? Quantas famílias destruídas, pessoas com problemas de saúde contínuos, feridas que nunca cicatrizarão?
Lembro que, vendo se desenrolar diante de mim uma verdadeira distopia, um dos meus refúgios durante a pandemia era cantarolar a música “Apesar de você” do Chico Buarque. A canção me consolou no início do governo com a fatídica frase de “passar a boiada”, acompanhou em cada um dos tenebrosos atos do ex-presidente junto a seus apoiadores em frente aos quartéis, explodiu dentro de mim quando saiu o resultado das últimas eleições presidenciais.
Enquanto fogos de artifício estouravam pelo meu bairro e pessoas comemoravam pelas ruas, eu estava escutando “Apesar de você” em loop.
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Hoje, dois anos depois, diante da divulgação do relatório completo da Polícia Federal que destrinchou uma trama golpista que parece cômica, mas é muito séria, a primeira música que me veio à mente foi…
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Não é muito irônico, maravilhoso e, ao mesmo tempo, assustador pensar que essa música, composta em 1978 na época da ditadura militar, ainda continua atual? É irônico diante da situação que estamos vivenciando e como versos de décadas passadas parecem um prenúncio. Maravilhoso ver a genialidade de um compositor capaz de moldar uma canção atemporal e tão significativa. Assustador porque, se “Apesar de você” ainda continua atual, isso me faz pensar que o país não conseguiu dar um passo rumo à superação de suas mazelas.
Por isso, sinto um sentimento de justiça agridoce.
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
“Apesar de você” nos clama por esperança; uma alegria baseada na certeza de que “nada dura para sempre”. Porém, ao mesmo tempo, Chico Buarque nos alerta para que esse “nada”, apesar de um dia acabar, pode durar por muito tempo, destruir muitas mentes e jogar suas ervas daninhas por todo um país.
Comemoremos, sim, mas nos mantenhamos em alerta máximo.
Certas serpentes não morrem tão fácil.
Música: Apesar de você, Chico Buarque (Francisco Buarque de Hollanda)
Álbum: Chico Buarque, 1978
Amanhã vai ser outro dia
Amanhã vai ser outro dia
Amanhã vai ser outro dia
Hoje você é quem manda
Falou, ‘tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando sem parar
Quando chegar o momento, esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido, esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza de desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
‘Inda pago pra ver (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
O jardim florescer (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Qual você não queria (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Você vai se amargar (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Vendo o dia raiar (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Sem lhe pedir licença (lá-lá-iá-lá)
E eu vou morrer de rir (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Que esse dia há de vir (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Antes do que você pensa (lá-lá-iá-lá)
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
A manhã renascer (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
E esbanjar poesia (lá-lá-iá, lá-lá-iá-lá)
Como vai se explicar (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Vendo o céu clarear (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
De repente, impunemente (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Como vai abafar (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Nosso coro a cantar (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Na sua frente (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai se dar mal (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Etcetera e tal
Lá-lá-iá, lá-lá-iá (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Lá-lá-iá, lá-lá-iá (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Lá-lá-iá, lá-lá-iá (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Lá-lá-iá-lá (lá-lá-iá-lá)
Lá-lá-iá, lá-lá-iá (lá-lá-iá, lá-lá-iá)
Lá-lá-iá-lá (lá-lá-iá-lá) apesar de você
Apesar de você
Amanhã há de ser