Uma igreja que ensine a amar é um sonho?
Tomadas por interesses individuais, as religiões se tornaram refúgios que mais criam atritos do que constroem pontes.
DONA GARDÊNIA (NOME FICTÍCIO), INTEGRANTE DA LEGIÃO DE MARIA DE UMA IGREJA EM SÃO LUÍS, MARANHÃO, ENTROU EM DEPRESSÃO DURANTE A ÉPOCA DE QUARENTENA EM 2020. O motivo é que, com a igreja fechada, ela ficou sem ter o que fazer. “Eu vivia para a igreja todos os dias. Era lá que eu ia para me encontrar com Deus e com minha Nossa Senhora. E agora?”, questionou em uma videochamada. “De repente, eu me vi largada, abandonada.” Perguntei se ela não rezava em casa, ao que dona Gardênia foi categórica: “Eu só sinto Deus na casa dele.”
Uma das coisas que eu acho mais estranha ao pensar sobre a sociedade é ver a atitude das pessoas como dona Gardênia em relação à religião. Isso porque muitas, por mais que se digam religiosas e de fé, têm a crença, estranha ao meu ver, de buscarem por Deus apenas nas igrejas sem perceberem que Deus está dentro de nós. E sim, por mais que isso pareça uma sessão de autoajuda com alguém que chegará a conclusão de que Ah, sim, Deus está dentro de você! Diga amém!, algo tão dito, o fato é que poucos têm de fato essa noção — e o sofrimento advindo disso é muito grande. E se pensarmos na pandemia de Covid-19, a onda da doença veio indicar isso de uma forma muito cruel.
No momento em que as pessoas tomam a igreja como a única morada de Deus, pensamento ao qual foram levadas a acreditar durante séculos e séculos, e no momento em que essas igrejas acabam fechadas, o resultado é um sentimento generalizado de eu não consigo mais encontrar Deus porque a morada de Deus está fechada. Tal equívoco, então, desemboca em descrédito, desespero, angústia, pensamentos de que houve um abandono divino, castigo. E o detalhe é que Deus está ali, ao lado da pessoa, com a mão no ombro dela para confortar nestes tempos de tantas incertezas que estamos vivendo. No entanto, a pessoa não sente, não olha, não percebe esse toque.
Aqui, precisamos pensar no perigo que isso causa e sempre causou, pois é secular o fato de a igreja tomar essa questão de ser a morada de Deus como um fator de poder e mesmo de domínio diante da sociedade.
É claro que a religião tem um papel importantíssimo de controle social. Muitas das vezes as pessoas não fazem o que querem porque tem todo esse sentimento de inferno, de pecado, de que Deus está olhando; sentimento de que a igreja está olhando. As religiões têm esse papel de moralizar e de indicar o que é ético, o que é amoral, o que imoral ou não. Então, nesse ponto, a igreja é crucial para o equilíbrio social. Não podemos ignorar isso. Porém, ao mesmo tempo a gente percebe como as igrejas se esqueceram de traduzir para as pessoas o fato de que elas são apenas um caminho até Deus; um dos milhares de caminhos até Deus, mas não o único. Esse é o ponto essencial.
As religiões, principalmente quando são individualizadas nas figuras de alguns padres, pastores, monges, sacerdotes, etc, se moldaram como porta vozes de Deus e elas não são. As religiões são uma confraternização para que as pessoas, juntas, possam compreender Deus. Mas essa confraternização, apesar de parecer, ela não é unânime.
“o amor é um Deus que não cabe na religião”
Outra questão que podemos pensar é que no momento em que as religiões se moldam como uma unanimidade e com um discurso dito como o correto a ser seguido para quem quiser encontrar Deus e ser salvo, essa “unanimidade” vira quase que uma autocracia. Ou seja, um indivíduo ou um grupo que toma o poder para dominar as massas. Tal domínio se impõe na crença de uma unidade para os seus fiéis, impõe uma série de ritos, uma série de regras e um inimigo a se combater. Quais inimigos? Outras religiões, pessoas que pensam diferente, as religiões de matriz africana, por exemplo. São as figuras vestidas com a pecha de pecado, indicadas para usarem a máscara do Diabo, usadas pelas religiões para dar às pessoas um norte de combate.
Lembra do ditado que diz que a melhor forma de unir as pessoas é ter um inimigo em comum?
Infectadas pela ganância política, as religiões começaram a servir como um baú de sacralidade. Em um país tão religioso como é o Brasil, poucos são os que ousam ir contra esse baú e essa força permite que dentro dele se escondam coisas que passam longe do cerne do cristianismo, por exemplo: o amor ao próximo.
Se Cristo voltasse hoje, em pleno século XXI, ele reconheceria as religiões, será? Será que ele olharia para padres e pastores com discursos homofóbicos, transfóbicos, racistas, machistas, preconceituosos, discursos de ódio, e aplaudiria? A igreja que a Bíblia diz que ele pede para Pedro dar continuidade são as igrejas que temos hoje? A opulência da igreja católica e o enriquecimento de alguns seguimentos da igreja evangélica estão de acordo com os ensinamento de Cristo?
Como canta Elza Soares na música Credo, “o amor é um Deus que não cabe na religião”.
E tanto não cabe que Cristo, suponho, seria crucificado de novo. Dessa vez, porém, com milhares de celulares apontados para sua cruz e a hashtag #justiça postada nas redes sociais.
Uma grande questão das religiões como templo único da voz de Deus é moldar sociedades cujos indivíduos são incapazes de olharem para dentro de si para encontrarem conforto nos próprios corações. E ao não encontrarem conforto no próprio silêncio, as pessoas buscam pelas igrejas para receberem esse abraço. O problema são as consequências desses abraços quando os braços que os ofertam estão carregados de interesses e de vontade de dominar.
Por uma igreja menos dourada e de mais pés no chão. Esse é o sonho.
Uma igreja que ame.