Vamos controlar o corpo feminino?

O Projeto de Lei 1904/24 que equipara aborto a homicídio mostra o perigo de uma sociedade regida por falsos moralismos.

Henggo
7 min readJun 14, 2024
Vê-se uma menina grávida, com marcas de agressão pelo corpo e expressão triste, olhando para seus brinquedos jogados em um canto. Em destaque, a frase “criança não é mãe”.
Arquivo pessoal.

TENHA CERTEZA: políticos amam usar pautas morais para fugir dos problemas reais do país. É assim em todos os níveis de governo. Nesta semana, temos visto o Congresso Nacional, especificamente a Câmara dos Deputados, debruçado sobre um polêmico projeto que basicamente equipara aborto a homicídio. Se aprovado, enquanto um estuprador, caso seja condenado, pode pegar até 6 anos de prisão, uma mulher que aborte pode pegar até 20 anos de prisão.

Percebe a disparidade?

Temos o Rio Grande do Sul destruído pelas enchentes, níveis alarmantes de feminicídio, pautas ambientais ignoradas diante da crise climática, indígenas ainda acossados pelo garimpo, e o Congresso Nacional quer controlar o corpo feminino, como sempre. Mas o que esperar de uma instituição formada majoritariamente por homens, brancos e ricos? E ainda com o tempero religioso retrógrado que usa o nome de Deus para justificar barbaridades.

Mais uma vez, é a balela de “proteger nossas criancinhas inocentes”.

Bom, senhores e senhoras deputadas, nossas “criancinhas inocentes” estão sendo estupradas e um projeto como esse é praticamente uma condecoração a quem comete estupro. Simbolicamente, caso seja aprovado, será como dizer para aquela menina de 11 anos grávida que ela terá de suportar as consequências do estupro que ela sofreu, afinal, “toda vida vale a pena” — mesmo que oriunda de uma violência brutal como essa e ainda que destrua a vida dessa menina.

O Projeto de Lei 1904/2024 equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio. Dessa forma, aumenta de 10 anos para 20 anos a pena máxima nesses casos. Nesta quarta-feira (12) a Câmara dos Deputados aprovou a urgência do projeto em exatos 24 segundos. Repito: VINTE E QUATRO SEGUNDOS. Com a urgência, o texto não precisará passar por análises de comissões e pode ser votado diretamente no plenário. Para falar o português claro: o projeto não passou por debates e não passou por audiências públicas. Basicamente, ele foi imposto.

Ainda bem que continuamos a viver em um país onde as pessoas podem se manifestar livremente e é o que muitos têm feito. Porém, em uma sociedade patriarcal, desigual e misógina como é a nossa, um Congresso formado em sua maioria por homens é incapaz de evoluir.

No livro “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir explica muito bem como uma sociedade como essa subjuga o corpo feminino e trata a mulher como mero objeto sexual, uma maneira de transformá-las em uma espécie de invólucro que só tem três funções:

  • Dar prazer aos homens;
  • Cuidar dos homens;
  • Gerar filhos (preferencialmente, homens)

A autora enfatiza:

“A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mesma, mas em relação a ele; ela não é considerada um ser autônomo. […] A mulher tem sido, através dos tempos, um ser passivo e inerte, privado de liberdade.” (Beauvoir, S. O Segundo Sexo).

Nesse ponto, quando jogamos luz sobre a questão do aborto, temos uma disparidade ainda maior dentro desse preconceito. As mulheres negras, pobres e periféricas são um contingente que sofre bastante em relação a esse ponto. Um estudo publicado em 2023 na revista Ciência e Saúde Coletiva, intitulado “Aborto e Raça no Brasil, 2016 a 2021” aponta que as mulheres negras têm 46% mais chances de fazer um aborto. A pesquisa, feita por Emanuelle Góes, pesquisadora associada do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em parceria com pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de Columbia (EUA), destaca que até a idade de 40 anos uma em cada cinco mulheres negras e uma em cada sete mulheres brancas terão feito um aborto.

E como sabemos que há uma disparidade financeira colossal, é claro que as mulheres negras ficam mais vulneráveis nestes casos. Uma mulher branca com recursos fará seu aborto de forma segura. Já uma mulher preta e pobre terá de ir ali naquela clínica clandestina em um beco onde lhe darão um abortivo. Isso quando essa mulher, sozinha, não tenta realizar o aborto por conta própria, correndo riscos ainda mais altos de vida. Junte isso ao Projeto de Lei 1904/2024 e você terá uma ideia da carnificina que estamos prestes a presenciar se um retrocesso desse for aprovado.

No site da Fiocruz, que repercutiu a pesquisa citada acima, o texto de Raíza Tourinho (Cidacs/Fiocruz Bahia) alerta para três pontos problemáticos de quando ocorre essa criminalização:

“[…] Primeiro, impede que as mulheres acessem os serviços de saúde público e privados para realizar aborto e, por isso, faz com que as mulheres usem métodos inseguros para abortar, o que às expõem a riscos importantes e desnecessários, pois os métodos de aborto recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) são simples e seguros.

Segundo, as complicações do aborto inseguro não recebem tratamento, pois as mulheres temem denúncias. A criminalização faz com que um volume imenso de mulheres evite exercer seus direitos de tratamento independentemente das causas do problema de saúde por medo de represálias.

Terceiro, impede a prevenção do aborto. Por um lado, a criminalização impede a discussão do tema nos ambientes adequados. Discutir aborto pode ser visto como apologia ao crime e só isso basta para conter discussões positivas que resultariam em prevenção. Por outro lado, a criminalização não permite que o sistema de saúde dê atenção adequada às mulheres de modo a evitar o aborto de repetição.” (Tourinho, R. Estudo aponta que mulheres negras são mais vulneráveis ao aborto no Brasil)

E aqui eu cito Angela Davis. Na obra ‘Mulheres, Raça e Classe”, a filósofa e acadêmica norte-americana aponta que:

“O controle sobre a reprodução das mulheres negras tem sido um instrumento de controle racial e de gênero ao longo da história.” (Davis, A. Mulheres, Raça e Classe)

Tenhamos sensatez e não tapemos o sol com a peneira: com o avanço de algumas igrejas com falsos moralismo para dentro de comunidades periféricas e a inserção de pensamentos deturpados unidos a projetos políticos como esse é mais um ingrediente tóxico em em sociedade onde os corpos negros ainda são tratados como inferiores. Mas não pense que eu falo apenas das igrejas evangélicas, viu?

Em maio deste ano de 2024, o Papa Francisco participou de uma conferência em Roma e criticou a indústria de contraceptivos. O pontífice alegou que:

“Os lares estão cheios de objetos e esvaziados de crianças, tornando-se lugares muito tristes. Não faltam cachorrinhos, gatos, não faltam. Faltam crianças.

Um Congresso Nacional formado majoritariamente por homens… A Igreja Católica formada majoritariamente por homens… Sim, estamos falando da mesma coisa. E ambas as instituições imersas no conceito de “falar em nome de Deus”.

Sinceramente, é um assunto com tantas camadas que fica até difícil fazer um texto que expresse a grandiosidade do problema. Nesses tempos de campanhas massivas de desinformação e ascensão de grupos político-religiosos fundamentalistas, que promovem a deterioração social em vários níveis, muito com base no medo e em lavagem cerebral, a situação é ainda mais complexa.

Fake news, falsos profetas e cooptação das pessoas com discursos de ódio é uma combinação que explica muito sobre as ‘prioridades morais” do nosso Congresso Nacional.

O papel dos homens

Por fim, algo que sempre destaco é que um homem não pode ser feminista (ou feministo, como dizem alguns idiotas). O feminismo é um movimento que deve ser encabeçado pelas mulheres e não podemos roubar mais esse protagonismo — ainda mais que nós, homens, não temos condições de sentir essa dor. Eu acho MUITA ousadia um homem querer apontar o dedo e dizer como uma mulher se sente ou como ela deve ser sentir.

Sabe quando muitos de nós tratamos os outros animais como seres irracionais? Pois bem: olhe ao seu redor, escute, perceba, veja como muitos homens tratam as mulheres do mesmo jeito. É assustador.

Agora, nós, homens, podemos sim ser pró-feminismo e apoiar essa luta. Diferente do que muitos incomodados pensam, o feminismo em sua essência não busca destruir os homens. O feminismo é um movimento de equidade, um movimento de empatia diante de um fato: durante toda a história as mulheres foram e são subjugadas e isso tem consequências para todos nós. Por mais que você não pense sobre isso, você é parte do problema, independente do seu gênero.

Só o fato de você não pensar sobre isso (ou querer tacar pedras em quem levanta o assunto) é um exemplo do problema.

Vou fazer melhor e te dar um exemplo prático e visível: um mundo menos machista é um mundo com sociedades onde garotos, meninos, não sofrem a pressão por serem os “machos fodedores” que precisam “comer todo mundo” para se firmarem na sociedade. Eu te garanto que se esse pensamento infame não existisse, muitas agressões a mulheres não teriam ocorrido, muitos feminicídios teriam sido evitados e, provavelmente, não teríamos um Congresso Nacional ocupado por homens carentes e preocupadíssimos em discutir como controlar o corpo feminino para que o ‘Clube do Bolinha “ continue a se sentir no poder.

Chimamanda Ngozi, no livro “Sejamos todos feministas”, traz um resumo que se encaixa perfeitamente no que temos vivido:

“[…] A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. (…) A meu ver, feminista é o homem ou a mulher que diz: ‘Sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos que resolvê-lo, temos que melhorar’. Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar.” (Ngozi, C. Sejamos todos feministas)

Tem uma parte certeira em toda essa discussão levantada por Chimamanda que chama atenção para o modo como temos criado nossas “criancinhas inocentes “:

“[…] Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece.” (Ngozi, C. Sejamos todos feministas)

Exatamente pelo oposto não acontecer é que um projeto estúpido como esse ganha luz. Independente do seu gênero, lute contra isso. Para o seu bem e de todos nós como coletividade.

Enquanto o Congresso Nacional tenta controlar ainda mais o corpo feminino, nossas “criancinhas inocentes” estão sofrendo abusos diversos dentro de casa. Ou então, enquanto os pais moralistas estão na sala brigando pelo Whatsapp, suas crianças estão no quarto com um celular nas mãos vendo e fazendo coisas inimagináveis.

Mas como discutir isso não gera votos e exige que esses pais coloquem a carapuça, bom, vamos fingir que nada acontece, né?

E assim segue o Brasil, o país do futuro.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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