Vidas na Rodoviária de São Luís

Crônica

Henggo
5 min readApr 1, 2021
#praTodosVerem | Descrição da imagem: a pintura capta uma cena no Terminal Rodoviário de São Luís. Veem-se lojas à esquerda, pessoas andando, ônibus nas plataformas e, nas cadeiras à direita, os passageiros à espera do embarque.

GENTE QUE FALA, QUE ANDA, QUE CHEGA, QUE CHORA, QUE CORRE, QUE RI. Envoltos pelo barulho dos ônibus, pelo murmurinho das conversas, pela gritaria dos motoristas ou pelo cheiro de gordura que exala dos botecos… um mundo de concreto visto em 30 minutos, magia e descoberta no Terminal Rodoviário de São Luís.

Sábado, oito horas da manhã. Cadeiras vermelhas, dezenas de pessoas, uma catraca enferrujada, tempo nublado. Camisa, chinelo, bermuda, lápis em punho, caderno pronto. Sento-me ao lado de uma senhora de blusa xadrez e calça preta com uma grande mala azul. Ela olha constantemente para as próprias unhas. Está tão entretida na sua missão de inspecionar cutículas que não percebe quando um ônibus da Guanabara entra na plataforma. O motorista rechonchudo desce a escada com dificuldade. O bigode farto e a camisa abotoada até o pescoço com uma minúscula gravata lhe conferem o aspecto de um leão marinho de pelúcia. Um celular toca. A dama sentada nas cadeiras à minha frente, óculos pretos e vestido branco, atende com voz vacilante.

— Eu tô aqui na rodoviária… Eu vou puxar tua orelha!… Você devia ter vergonha nessa sua cara!… Você é uma mulher linda, maravilhosa… Não… Não quero conversar!… Não passe para ninguém que não quero saber… Sim… Que Deus te dê juízo… Tchau

Desliga e fica olhando para frente, pensativa.

Criança chorando, passos arrastados, zíper de bolsa, cachorro latindo…

Fileiras à minha frente, uma senhora de cabelos bem brancos e xale amarelo conversa com outra de meia idade. Um rapaz de bermuda e camisa listrada se aproxima com uma garrafa d’água e entrega à idosa. Ela aceita e ele se acomoda no assento à direita. Na área para embarque, algumas pessoas começam a passar pela catraca. Celular tocando. A mulher da mala azul grita ao telefone fazendo alguns transeuntes virarem para fitá-la.

Ei? Maria Rita? Diz pra mamãe que já tô indo, viu? Tu tá ouvindo, hein?! Tô aqui na rodoviária pra pegar o Guanabara, Maria Rita! Ouviu direito, diacho?.

Diz tudo isso em um fôlego só e desliga Ela olha para o lado, balança a cabeça, confere a hora no celular.

— Acho que é esse… Fortaleza….

Levanta-se, pega a alça da bolsa e lentamente vai se distanciando. Entrega o bilhete para o homem de camisa vinho da vistoria, passa pela borboleta e some nas profundezas do ônibus.

Apito, música ao fundo, bengala, buzinas de carro…

O que foi? Diz pro papai…

Do outro lado da grade azulada que separa a plataforma dos ônibus do saguão de espera, um rapaz de camisa amarela se ajoelha e olha para a filha. Cabelo entrançado, vestido vermelho, a menina lhe fala algo ao ouvido. O pai se levanta e segue com a pequena para o Guanabara.

— Ô meu fio, é São Luís-Fortaleza?

Um senhor me pergunta. Digo que sim. Ele se vira e continua andando.

Lá não tá a assinatura…

Duas senhoras com vestido de renda e cabeça encimada pelo branco sentam-se ao meu lado.

O Terminal agora está mais barulhento.

Uma lotação surge no horizonte: São Luís-Cajari. Minutos depois, um micro-ônibus para a cidade de Morros também se aproxima. Uma fila se forma ante a seção de embarque. Uma senhora com três crianças luta para passar uma caixa de isopor. Ali perto, uma garota de pernas de fora e cabelo loiro se espreguiça enquanto outra joga os braços no pescoço do namorado, que não lhe dá atenção.

A senhora e a amiga olham para o meu caderno. Olho para elas e as duas voltam a conversar. Uma menina vestida com um terno esverdeado passa puxando uma mala de rodinhas tapando o nariz com a mão. O cheiro de fumaça é nauseante.

Conversas, motores, catraca girando, passos por todo o lado…

Minhas vizinhas de banco de rodoviária conversam sobre as empregadas…

Não era pra mim vir nessa viagem, mas, por motivo de doença, a gente vai, né cumade?! Agora a menina fica e não faz as coisa direito… nem sei quem é a pessoa! E se não for gente boa? Como fica?.

Perto do ônibus de Cajari, um homem sem as duas pernas se arrasta pelo chão pedindo dinheiro. A minoria se importa. Poucos o veem. As idosas mudaram de assunto e agora falam da vida alheia.

— … mas o velho é ruim, é ruim, cumade! É enjoado, é teimoso… é um porcaria de merda! Um bosta fedida!

A buzina do veículo para Presidente Juscelino soa pelo saguão. O micro ônibus de Morros estanca e alguns adolescentes vaiam. Todos olham. São Luís-Fortaleza faz a manobra e, envolto em fumaça, vai para o seu destino. O de São Luís-Teresina chega e fica em seu lugar. Pessoas correm.

Um senhor no final da fila de passageiros reclama de dores nas costas. Perto dele, uma senhora chora enquanto se despede de um rapaz. Ele passa as mãos pelo rosto dela e pede a benção. O som da catraca é uma melodia de embarque e desembarque. Um motorista gargalha ao escutar algo de um menino-camelô. Tira um dinheiro do bolso e pega uma caixinha de chicletes.

Passos, burburinho, som das portas dos ônibus, frenagem…

O menino-camelô insiste em oferecer doces e balas. Uns negam com um aceno, outros passam quase ao atropelo. Ao lado de um recém-chegado São Luís-Salvador, senta-se no chão e olha as pessoas com olhos de desolação. Ergue a cabeça e observa o grupo de adolescentes, todos com roupas de marca. Aqui, privilégio e pobreza compartilham o mesmo ar. Falsa democracia.

Eu volto a olhar para minhas anotações. A companheira da mulher ao meu lado sai para comprar um lanche e a deixa ainda mais interessada no que eu escrevo. A voz grave do locutor ecoa pelo Terminal.

Bom dia, senhoras e senhores passageiros! São 08h39min! Para quem está partindo, tenha uma boa viagem! Você tem viagem pela Cisne Branco para Paulo Ramos às 9:15. Antes de viajar, se alimente bem!

A senhora ao meu lado está prestes a pedir meu caderno para ler o que andei escrevendo. Levanto-me e saio junto com o ônibus de Cajari. Olho para trás. De longe, a tristeza se veste de alegria. A senhora apoia o rosto na mão e observa as partidas e despedidas ao redor. O menino-camelô permanece em sua solidão pensativa. O homem sem as duas pernas continua invisível. As pessoas partem, chegam, choram, comem, correm, vivem.

E vou embora com um caderno cheio de resquícios daquelas vidas alheias invisíveis.

A obra Vidas na Rodoviária de São Luís pode ser vista junto à outras telas, escritos e ilustrações em https://linktr.ee/Henggo

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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