É possível ser feliz sozinho? (#ArteEmContos)

Henggo
5 min readFeb 27, 2021

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#praTodosVerem | Descrição da imagem: autorretrato do autor. A pintura mostra um homem nu de costas. Ele caminha em direção ao mar azulado, envolto por uma luminosidade do entardecer. Ao fundo, na linha do horizonte, vemos formações montanhosas com matas e pedras.

LEMBRO DE UMA ÉPOCA EM QUE ME FALAVAM MUITO A EXPRESSÃO “ENCONTRAR ALGUÉM PARA PREENCHER MINHA ESTANTE” (OU VARIAÇÕES COM O MESMO SENTIDO). Sem dúvida, é uma analogia interessante. Mas, quando eu pensava com mais afinco sobre os pormenores desse dizer, começava a me questionar se não havia algo de errado naquilo. E uma das perguntas mais recorrentes que eu me fazia era:

“E se a minha estante já estiver cheia?”

Tive um namorado e duas namoradas. Nada muito sério, admito. Mas, nos três relacionamentos, um sentimento recorrente era não me sentir inteiro. Pelo contrário, eu me sentia condicionando a minha felicidade às ações alheias. Assim, naquela época, mais de uma década atrás, eu já adorava escrever — e me sentia em­ êxtase com isso. Contudo, não raro surgiam sentimentos do tipo:

Poxa, mas fulana tem que fazer parte disso. Estamos namorando, afinal!

ou

Somos um casal. Temos de fazer tudo juntos, não?!”.

O processo de escrita (que já consumia algumas horas do meu tempo) vinha acompanhado de uma culpa por não estar aproveitando esse tempo livre com o namoro. Em outros termos, eu só estava feliz quando estava junto dessas pessoas e (seguindo os preceitos sociais) era minha obrigação encontrar minha “cara metade” para, aí sim, poder dizer com o peito estufado: “eu sou feliz!”

Porém, o destino tem opiniões bem divergentes de nós e nenhum desses três relacionamentos vingou. Mais uma vez, eu me vi sozinho. Após o término com a última garota, optei por me fechar e repensar algumas coisas. Aos 23 anos, eu deixei aflorar em mim uma pergunta até então ignorada e rejeitada com afinco:

Por que eu não posso ser feliz sozinho?

Ou melhor:

Por que, para me sentir completo, eu tenho de estar com outra pessoa?

No início, eu me senti egoísta, afinal, eu estava em um caminho pedregoso, oposto ao que a sociedade julga como “normal” — o princípio do “amor romântico que salva e justifica tudo”. O problema era que eu já estava em um caminho sem volta e da escuridão do abismo de dúvidas vinham novas possibilidades, novas perguntas e sentimentos. Era sedutor. Ciente dos golpes que eu tomaria por essa decisão, eu me joguei. E digo com toda a certeza: foi a melhor queda da minha vida!

Atirei em mim mesmo; fiz o que a maioria das pessoas tem medo: olhei-me no espelho, conversei comigo mesmo. Perguntei-me “afinal, o que me faz feliz de verdade?”. Desconstruí, apanhei, cortei-me em pedaços; fiquei no limiar entre a felicidade e a tristeza profunda. A angústia surgiu como uma companheira de palavras sorrateiras, ditas em noites insones quando a mente insiste em continuar ativa.

Não foi fácil. Nem um pouco. À todo o momento, eu me sentia “pressionado”, “observado”, “culpado”; cheio de paranoias do tipo “Meu Deus, o que as pessoas vão falar de mim?”. Foi terrível.

As reuniões de família, quando aquele tio chato chega e pergunta “e as namoradinhas?”, se tornaram um martírio quarenta vezes maior. Isso porque a minha resposta de “eu estou feliz sozinho” soava mentirosa, como se fosse impossível alguém ser feliz consigo mesmo ou como se eu estivesse escondendo alguma coisa. E foi durante esse caminhar por aquela rota abismal que eu voltei a desenhar e passar cada vez mais horas e horas navegando em um papel em branco sobre um mar de cores.

Meses depois, certo dia eu pensei:

“Poxa, eu nunca me senti tão completo!”.

No mesmo ritmo, também voltei a escrever com mais empenho e, à cada fim de madrugada, após uma tempestade de ideias, olhava para o resultado e concluía: “ei, eu posso fazer isso! Eu gosto disso!

É nesse ponto que surge o aspecto mais interessante: ao realizar essas atividades sem alarde, convicto das minhas ações, eu vi que não precisava expor essas coisas aos quatro cantos para que eu me sentisse feliz, esperando a aprovação dessa ou daquela pessoa. Naquela época, eu as guardei para mim porque eu mesmo, sozinho, estava feliz — veja só! — comigo mesmo!

Em resumo: depois de muitos anos, eu descobri que eu sou o meu maior fã. Descobri que eu não podia esperar que outras pessoas viessem “completar a minha estante”. Se eu não o fizesse com as coisas de que eu gosto, eu estaria atrelado às pessoas em um constante jogo de interesse no qual “eu só sou feliz se você me aprovar”.

Não!

A aproximação dos outros não deve ser um imperativo para a minha felicidade e sim um simples bônus; uma soma. Eu posso até fazer um “puxadinho” no meu quarto para acomodar outra estante, mas ciente de que a minha estante já está completa com o amor que mais importa: o amor que eu tenho por mim mesmo. Chame de egoísmo, arrogância, egocentrismo, enfim… palavras não faltarão. Mas, para mim, isso se chama felicidade.

É o velho e tão repetido clichê: “não condicione sua vida a outra pessoa!

Seja um filho, marido, esposa, amigo, neto, cachorros (ou afinidades em geral!), é preciso tirar um pouco a cabeça de dentro da maré, olhar ao redor e ver que tem muita coisa que aprendemos e repassamos às novas gerações que são equivocadas.

Estar bem consigo mesmo não é mal algum!

Eu não vou para o céu ou para o inferno por isso. Deus (ou seja lá o nome que você atribuir) não vai me amar mais ou amar menos diante dessas escolhas. Diga-se de passagem, “Ele” deve ter milhões de problemas maiores para resolver do que tratar da vida de um mísero ser humano dentre bilhões e bilhões de vidas universo afora.

Deixar de usar o amor dos outros como bengala e aprender a andar com as próprias pernas é um caminho interessante. Há um verdadeiro compartilhamento de almas e de sentimentos, e não uma imposição do “estar junto”. Jogar correntes ao redor do outro não é amor, é posse. A posse não leva ao compartilhamento de vivências. Leva, sim, às angústias de perguntas como:

Será que ele me ama?

Onde será que ela vai?

Quem é aquele cara perto dela?

A posse é o cupim dos relacionamentos.

Hoje, eu me sinto muito mais maduro para (se vier a acontecer) eu entrar em um relacionamento de peito aberto, ciente de que o abraço que eu der será verdadeiro, sem esperar por algo em troca. Sim, eu confesso que preciso abrir os braços (algo que ainda não estou disposto a fazer), mas, tenho convicção de que agora eu posso me jogar de corpo e alma porque a âncora da minha vida não estará em outra pessoa, mas sim na minha própria estante; no meu porto seguro.

O meu próprio eu.

A obra Um Olhar, uma Praia pode ser vista junto à outras telas, escritos e ilustrações em https://linktr.ee/Henggo

#praTodosVerem | Descrição da imagem: autorretrato do autor. A pintura mostra um homem nu de costas. Ele caminha em direção ao mar azulado, envolto por uma luminosidade do entardecer. Ao fundo, na linha do horizonte, vemos formações montanhosas com matas e pedras.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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