LEMBRO DE UMA ÉPOCA EM QUE ME FALAVAM MUITO A EXPRESSÃO “ENCONTRAR ALGUÉM PARA PREENCHER MINHA ESTANTE” (OU VARIAÇÕES COM O MESMO SENTIDO). Sem dúvida, é uma analogia interessante. Mas, quando eu pensava com mais afinco sobre os pormenores desse dizer, começava a me questionar se não havia algo de errado naquilo. E uma das perguntas mais recorrentes que eu me fazia era:
“E se a minha estante já estiver cheia?”
Tive um namorado e duas namoradas. Nada muito sério, admito. Mas, nos três relacionamentos, um sentimento recorrente era não me sentir inteiro. Pelo contrário, eu me sentia condicionando a minha felicidade às ações alheias. Assim, naquela época, mais de uma década atrás, eu já adorava escrever — e me sentia em êxtase com isso. Contudo, não raro surgiam sentimentos do tipo:
“Poxa, mas fulana tem que fazer parte disso. Estamos namorando, afinal!”
ou
“Somos um casal. Temos de fazer tudo juntos, não?!”.
O processo de escrita (que já consumia algumas horas do meu tempo) vinha acompanhado de uma culpa por não estar aproveitando esse tempo livre com o namoro. Em outros termos, eu só estava feliz quando estava junto dessas pessoas e (seguindo os preceitos sociais) era minha obrigação encontrar minha “cara metade” para, aí sim, poder dizer com o peito estufado: “eu sou feliz!”
Porém, o destino tem opiniões bem divergentes de nós e nenhum desses três relacionamentos vingou. Mais uma vez, eu me vi sozinho. Após o término com a última garota, optei por me fechar e repensar algumas coisas. Aos 23 anos, eu deixei aflorar em mim uma pergunta até então ignorada e rejeitada com afinco:
“Por que eu não posso ser feliz sozinho?”
Ou melhor:
“Por que, para me sentir completo, eu tenho de estar com outra pessoa?”
No início, eu me senti egoísta, afinal, eu estava em um caminho pedregoso, oposto ao que a sociedade julga como “normal” — o princípio do “amor romântico que salva e justifica tudo”. O problema era que eu já estava em um caminho sem volta e da escuridão do abismo de dúvidas vinham novas possibilidades, novas perguntas e sentimentos. Era sedutor. Ciente dos golpes que eu tomaria por essa decisão, eu me joguei. E digo com toda a certeza: foi a melhor queda da minha vida!
Atirei em mim mesmo; fiz o que a maioria das pessoas tem medo: olhei-me no espelho, conversei comigo mesmo. Perguntei-me “afinal, o que me faz feliz de verdade?”. Desconstruí, apanhei, cortei-me em pedaços; fiquei no limiar entre a felicidade e a tristeza profunda. A angústia surgiu como uma companheira de palavras sorrateiras, ditas em noites insones quando a mente insiste em continuar ativa.
Não foi fácil. Nem um pouco. À todo o momento, eu me sentia “pressionado”, “observado”, “culpado”; cheio de paranoias do tipo “Meu Deus, o que as pessoas vão falar de mim?”. Foi terrível.
As reuniões de família, quando aquele tio chato chega e pergunta “e as namoradinhas?”, se tornaram um martírio quarenta vezes maior. Isso porque a minha resposta de “eu estou feliz sozinho” soava mentirosa, como se fosse impossível alguém ser feliz consigo mesmo ou como se eu estivesse escondendo alguma coisa. E foi durante esse caminhar por aquela rota abismal que eu voltei a desenhar e passar cada vez mais horas e horas navegando em um papel em branco sobre um mar de cores.
Meses depois, certo dia eu pensei:
“Poxa, eu nunca me senti tão completo!”.
No mesmo ritmo, também voltei a escrever com mais empenho e, à cada fim de madrugada, após uma tempestade de ideias, olhava para o resultado e concluía: “ei, eu posso fazer isso! Eu gosto disso!”
É nesse ponto que surge o aspecto mais interessante: ao realizar essas atividades sem alarde, convicto das minhas ações, eu vi que não precisava expor essas coisas aos quatro cantos para que eu me sentisse feliz, esperando a aprovação dessa ou daquela pessoa. Naquela época, eu as guardei para mim porque eu mesmo, sozinho, estava feliz — veja só! — comigo mesmo!
Em resumo: depois de muitos anos, eu descobri que eu sou o meu maior fã. Descobri que eu não podia esperar que outras pessoas viessem “completar a minha estante”. Se eu não o fizesse com as coisas de que eu gosto, eu estaria atrelado às pessoas em um constante jogo de interesse no qual “eu só sou feliz se você me aprovar”.
Não!
A aproximação dos outros não deve ser um imperativo para a minha felicidade e sim um simples bônus; uma soma. Eu posso até fazer um “puxadinho” no meu quarto para acomodar outra estante, mas ciente de que a minha estante já está completa com o amor que mais importa: o amor que eu tenho por mim mesmo. Chame de egoísmo, arrogância, egocentrismo, enfim… palavras não faltarão. Mas, para mim, isso se chama felicidade.
É o velho e tão repetido clichê: “não condicione sua vida a outra pessoa!”
Seja um filho, marido, esposa, amigo, neto, cachorros (ou afinidades em geral!), é preciso tirar um pouco a cabeça de dentro da maré, olhar ao redor e ver que tem muita coisa que aprendemos e repassamos às novas gerações que são equivocadas.
Estar bem consigo mesmo não é mal algum!
Eu não vou para o céu ou para o inferno por isso. Deus (ou seja lá o nome que você atribuir) não vai me amar mais ou amar menos diante dessas escolhas. Diga-se de passagem, “Ele” deve ter milhões de problemas maiores para resolver do que tratar da vida de um mísero ser humano dentre bilhões e bilhões de vidas universo afora.
Deixar de usar o amor dos outros como bengala e aprender a andar com as próprias pernas é um caminho interessante. Há um verdadeiro compartilhamento de almas e de sentimentos, e não uma imposição do “estar junto”. Jogar correntes ao redor do outro não é amor, é posse. A posse não leva ao compartilhamento de vivências. Leva, sim, às angústias de perguntas como:
“Será que ele me ama?”
“Onde será que ela vai?”
“Quem é aquele cara perto dela?”
A posse é o cupim dos relacionamentos.
Hoje, eu me sinto muito mais maduro para (se vier a acontecer) eu entrar em um relacionamento de peito aberto, ciente de que o abraço que eu der será verdadeiro, sem esperar por algo em troca. Sim, eu confesso que preciso abrir os braços (algo que ainda não estou disposto a fazer), mas, tenho convicção de que agora eu posso me jogar de corpo e alma porque a âncora da minha vida não estará em outra pessoa, mas sim na minha própria estante; no meu porto seguro.
O meu próprio eu.
A obra Um Olhar, uma Praia pode ser vista junto à outras telas, escritos e ilustrações em https://linktr.ee/Henggo