O dia em que minha cachorra morreu (ou We Love You So, Carter Burwell)

Deixar partir é um ato de amor que nos faz crescer e ver a vida com olhos de serenidade, ciente da beleza da finitude de tudo.

Henggo
10 min read1 day ago
Vê-se o desenho de uma cachorra de costas, mas com o focinho virado para a câmera, com grandes olhos expressivos.
“O olhar de Mila” (Arquivo pessoal)

EM UM BARCO, O JOVEM MAX, UM MENINO VESTIDO COM ROUPA DE LOBO, OLHA PARA TRÁS. Longe, na praia, seus amigos observam sua partida e choram a dor e a beleza de um dos atos mais humanos, empáticos e difíceis da vida: deixar partir. Há uivos de dor, acenos, choro no ombro. Momentos antes da partida, uma das personagens abraça o menino e, com os olhos chorosos, diz:

— Eu te amo tanto que eu queria te engolir.

Dar adeus machuca. Machuca muito. Mas precisamos fazer isso. Por nós e pelos outros.

Eu assisti ao filme “Onde Vivem os Monstros” (2009) no cinema, assim que lançou — algo semelhante ao que já relatei sobre o filme “A estrada” (2009). Não conhecia nada sobre o longa-metragem, sabia menos ainda sobre o livro. Lembro que foi mais uma daquelas situações em que você está no shopping e de repente pensa “Ah, vou pegar um cinema!”. Então, escolhe qualquer filme ali, na hora, e só vai curtir mais uma tarde de entretenimento. Ah, não. Não… Naquele dia, “Onde Vivem os Monstros” me golpeou de uma forma tão, mas tão profunda, que até hoje, dezesseis anos depois, ele ainda é um dos meus filmes favoritos e cuja trilha sonora já me acompanhou em muitas madrugadas de escrita. Porém, é mais do que isso.

Tanto a música quanto o filme abraçam e confortam muitos monstros que vivem dentro de mim. “Onde Vivem os Monstros” é uma daquelas obras que se dizem infantis, mas, na verdade, têm uma linguagem metafórica tão profunda que eu me pergunto se de fato a classificação faz sentido. É claro que crianças podem curtir, porém, disso tenho certeza, certas mensagens e passagens do filme, a melancolia, o silêncio, a dor, tudo carece de uma maturidade que só vem com o tempo, em um mergulho em nós mesmos, sem medo do que guardamos em nós.

E sem medo de conversar sobre isso com as crianças.

Escutar “We Love You So”, por exemplo, me faz calar, sentir, chorar, refletir. Sorrir o aconchego da vida por saber que cada segundo (e cada decisão) valeu a pena, apesar das dificuldades.

Um livro que me ensinou sobre a importância de parar de tratar as crianças como “pequenos idiotas imunes ao mundo” foi o clássico “Meu Pé de Laranja-Lima” do José Mauro de Vasconcelos. É uma obra linda, lúdica, mas crua ao trazer a realidade de uma criança pobre, faminta por amor, carente de tudo e todos — e o autor não tem medo de expor isso com todas as letras. Dói, mas faz crescer. Ali, nesse livro, foi uma das primeiras vezes que a mensagem de “deixar partir” fez sentido para mim.

Às vezes, talvez quase sempre, o maior amor do mundo é a capacidade de se desapegar do outro e deixar partir, ir embora, morrer. A antepenúltima cena de “Onde Vivem os Monstros”, que citei no início, para mim, é uma representação belíssima disso. Max, o protagonista, chora por saber que não voltará a ver os monstros; os monstros uivam de dor diante da saudade e da ausência do amigo. Mas todos ficarão bem.

É triste dizer, mas nós ficamos bem. Mesmo em meio às lágrimas, à dor, ao vazio, nós sempre ficamos bem. O filme nos ensina isso. E, orquestrando essa mensagem, tem a trilha sonora melancólica e bela composta por Carter Burwell, mais especificamente nessa cena, a música “We Love You So”.

Cartaz do filme “Onde Vivem os Monstros” (2009) (Divulgação)

Espero que você um dia já tenha experimentado ouvir algo ao ponto de ficar com os olhos marejados, porém, sorrindo. E eu não falo aqui sobre tristeza, ou felicidade. Talvez seja difícil para mim definir em palavras que sentimento é esse, com precisão. Desculpe. É só que… é paz, entende? Uma sensação de respirar profundo e contemplação, sei lá; de saber-se inteiro diante dos acontecimentos da vida, talvez. Eu sei, eu sei e reconheço que minhas experiências de vida contribuem bastante para esse meu olhar e talvez por isso seja muito complexo definir ao certo o que quero dizer aqui. Portanto, diante do contexto que eu trago neste relato, a melhor definição que consigo encontrar enquanto estou aqui escutando “We Love You So” é: serenidade diante da iminência do fim.

E o fato de ser uma música instrumental, sem uma letra que “conduza” ou “induza” esses sentimentos, parece tornar tudo ainda mais significativo. Uma canção instrumental exige de nós uma imersão, a meu ver, bem mais profunda; um silenciar que, nestes tempos de tanta correria, é rejeitado por muitas pessoas.

As pessoas têm medo de músicas que as fazem pensar, rememorar. Eu acho isso triste porque as pessoas não jorram o que há dentro delas. Ao criar represas de emoções, elas se desumanizam e, consequentemente, se tornam incapazes de entender a dor do outro. Nesse ponto, muitas embarcam em uma busca incessante e desesperada por felicidade a qualquer custo, algo que, ironicamente, só gera tristeza.

Escutar “We Love You So”, por exemplo, me faz calar, sentir, chorar, refletir. Sorrir o aconchego da vida por saber que cada segundo (e cada decisão) valeu a pena, apesar das dificuldades.

Eu ganhei meu primeiro cachorro quando eu tinha apenas 9 meses de vida. Robi, um pequinês alaranjado, foi meu companheiro durante muitos anos. Quando ele estava ali com uns 5 anos de vida, eu ganhei Totó, um amigo amarelado, mistura de vira-lata com Akita Inu. Robi morreu quando eu e ele tínhamos 13 anos e Totó se foi sete anos depois. Lembro que decidi não ter mais cachorro, mas aí uma colega minha da Rádio Universidade, que fazia parte de uma ONG de adoção, falou sobre uma cachorrinha com dias de vida, encontrada com a irmã numa caixa de sapatos num lixão.

Eu e Robi, abril de 1990 (Arquivo pessoal)
Totó, meu segundo cachorro, em setembro de 2005. (Arquivo pessoal)

Foi assim que, meses após Totó, Mila veio para o meu colo.

A experiência com Mila foi muito diferente. É claro que com os outros dois eu tinha responsabilidades, mas sem que eu me comprometesse de fato. Com ela, não. Lembro que quando eu fui assinar o termo de adoção, ali, naquele papel, eu percebi que aquele ser vivo era minha responsabilidade de fato. Com 20 anos nas costas e já trabalhando, eu percebi que aquela cadela ia precisar dos meus esforços. Ainda mais porque, abandonada em um lixão, ela precisou de tratamentos intensivos para sarna, muitas vacinas adicionais, cuidados extras. Um marco nessa questão da responsabilidade foi quando eu fui até a clínica veterinária e, sozinho, conversei com o médico para a cirurgia de histerectomia dela.

Eu cresci. Por causa dela, graças a ela, eu cresci.

Aprendi a treinar um cachorro, cortar as unhas, dar banho, aplicar injeções, a cuidar, embalar, falar sério; ter a noção de que eu não podia sair durante horas e horas sem atentar que ela precisava de mim. Tanto é que, durante os 15 anos de vida de Mila, eu não fiz viagens longas de dias e dias. O que muitos viam como sacrifício, eu chamava de cuidado.

Sou quem eu sou também por causa dela.

Foram quinze anos de apego. Quinze anos em que Mila demonstrou todo o amor que um cachorro pode ter por seu tutor. Em 2017, quando eu fiz a cirurgia de ginecomastia (retirada das glândulas mamárias masculinas) e passei meses deitado, ela dormiu ao lado da minha cama. Quando eu estava escrevendo, ela se deitava nos meus pés e ficava lá enquanto eu trabalhava. Nas noites em que eu armava a rede na varanda para dormir, Mila ficava logo abaixo de mim para me proteger. Ela pulou em pessoas que tentaram me agredir, odiava que pegassem minhas coisas e adorava me cutucar para pedir carinho. Ficava de pé, deitava, dava a patinha e tinha um carinho especial pelo que chamávamos de “surfar na grama”: colocava a barriga e ia se arrastando pelo gramado, feliz da vida. Era dada a se fazer de valente, mas latia e corria para se esconder debaixo da pia da lavanderia. Tinha rompantes de corrida que o treinamento não conseguiu conter e derrubou muitos dos meus sobrinhos por causa disso. Ela me fez rir e chorar e sou muito grato por ambos os sentimentos.

Então, no início de 2023, surgiu um tumor na lateral da perna direita dela. E foi ali que percebi que minhas experiências de vida haviam impulsionado o meu amadurecimento.

Algo polêmico que tenho é o fato de não ver beleza alguma nessas histórias de pessoas que estão há anos e anos vegetando sobre uma cama, a família munida de uma falsa esperança que reveste a dor, o cansaço e a tristeza da situação. Sim, eu sou a favor que um dia autorizem a eutanásia em humanos. Não entendo as pessoas abrirem a boca para falarem sobre vida e mais vida e obrigarem um familiar a encarar uma sobrevida como essa. Ok, OK, isso é um assunto complexo, e merece um artigo mais minucioso. Mas eu o trouxe aqui porque, como a eutanásia é um grande tabu, quando eu fui ao veterinário com Mila decidido a fazer a eutanásia, após exames que demonstraram a gravidade do caso, o médico se recusou a fazer.

Primeiro, por uns conceitos cristãos que ele tinha. Segundo (e isso me pareceu bem evidente), porque ele queria muito fazer uma cirurgia caríssima em uma cachorra de 15 anos que daria a ela uma sobrevida de poucos meses (isso sem contar o tempo de tratamento e recuperação). Terceiro, devido a uma lei que agora só recomenda a eutanásia em último caso. Contudo, convivendo há 35 anos com cachorros e, no caso dela, em uma relação intensa e diária de 15 anos, eu sabia, via e sentia que Mila morreria logo.

A pergunta que eu me fiz foi: eu quero trocar 15 anos de memórias felizes por meses de dor, sofrimento e angústia só pelo egoísmo de manter minha cachorra viva?

Você já sabe que a minha resposta foi não.

Muitas pessoas não acreditam no destino, nas peças do que eu chamo de “grande quebra-cabeça” da vida. Mila estava cansada, muito cansada naquele domingo, dia 21 de maio de 2023. O quebra-cabeça da vida fez com que fosse aniversário de uma tia minha e acabou que a minha mãe foi para a comemoração, enquanto eu fiquei em casa para cuidar de Mila. Eu estava agoniado, perdido, cansado, sem saber o que fazer diante da recusa do veterinário em realizar a eutanásia. Mila estava sem andar já há alguns dias, gemendo de dor, ofegante.

Como já escrevi em outro artigo desta série #MemóriasMusicais apesar de não ser cristão, eu sou fascinado pela Oração de São Francisco, a única oração que eu de fato respeito. Portanto, naquele dia 21 de maio, eu rezei. Foi o que fiz. Pedi tranquilidade acima de tudo. Depois, eu me sentei no chão, coloquei a cabeça de Mila em meu colo e conversei com ela. Eu só deixei vir, sabe. E foi bonito.

Eu agradeci muito. Agradeci pela companhia, pelos momentos de gargalhada e pelas eventuais mordidas; pelas brincadeiras, pela quantidade de camisas minhas que ela rasgou quando era filhote, os buracos gigantescos que fez no gramado. Eu agradeci por todo o amor, pelo respeito, por ela ter sido minha amiga por esses 15 longos e agradáveis anos. E em determinado momento, lembro de ter dito algo como:

— Vai, Mila. Pode partir. Tá tudo bem.

E ficamos ali, ela respirando cada vez mais lentamente, até que, às 17h15min daquele domingo, Mila se foi.

Mila em foto tirada em 2019. (Arquivo pessoal)

“We Love You So” me faz lembrar daquele momento de conexão quando, depois de Mila morrer, eu olhar para o céu e agradecer. Com ela ali, deitada no meu colo, eu me senti completo. Foi como um fechar de ciclo. Sozinho naquele quintal, antes tão cheio de vida e latidos e correria, eu não estava triste, mas sim sereno. Eu não era como os monstros uivando a partida do amigo, mas sim o Max, olhando para a praia de aventuras com os olhos marejados, coração apertado, mas ciente de que eu precisava sorrir e seguir em frente.

Até na morte, Mila me ensinou a ligar para a funerária, contratar o serviço de cremação, realizar todos os trâmites. Quando os funcionários chegaram para levá-la embora, eu estava em paz. Dias depois, quando fui buscar as cinzas de Mila, eu me sentia inteiro. E, ao chegar em casa, quando espalhei as cinzas no gramado que ela tanto amava, eu olhei para o céu e abri um sorriso gigantesco.

Deixar partir não é fácil, mas é necessário, ainda mais porque nos obriga a ver que nós mesmos precisamos partir. Metaforicamente ou não, devido a uma perda como essa, ou ao fim de um relacionamento, por exemplo, deixar partir é um ato de amor.

Deixar partir é deixar viver.

Hoje, 25 de outubro de 2024, aos 36 anos, estou há quase dois anos sem a companhia de um cachorro. Pela primeira vez na minha vida, literalmente, eu sei o que é não ter um animal de estimação. Confesso que sinto falta, sim, mas sinto que não é hora. Eu estou bem, inteiro, sereno. Um ciclo de 35 anos se fechou e sou grato por isso. Não houve luto, ficaram apenas as lembranças. E hoje nós aqui sorrimos ao nos flagrarmos contando histórias engraçadas sobre Mila.

A serenidade e a certeza da finitude são aconchegantes. E curam.

“We Love You So”, Mila. Muito obrigado por tudo.

Música We Love You So, Carter Burwell (Carter Burwell)

Álbum: Were The Wild Things Are: Original Movie Score, 2009

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Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo